quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Memórias de além-túmulo

por Wálter Maierovitch

Na sua última edição, CartaCapital mostrou como candidatos paulistas a cargos majoritários buscam conquistar os votos de 89% de descontentes com o tratamento sancionatório dado a menores infratores e considerado brando. O senador Aloysio Nunes Ferreira, candidato à Vice-Presidência da República, luta, para os casos de infrações hediondas, pela aprovação da sua emenda constitucional redutora a 16 anos da responsabilidade criminal. Essa emenda virou bandeira do candidato ao Senado José Serra, um dos tucanos corresponsáveis pela desastrada política paulista de segurança pública, sem esquecer tratar-se de um estado com superlotação em unidades de internações da autárquica Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Casa).
Por meio de proposta endereçada aos ex-ministros Márcio Thomaz Bastos e Paulo Vanucchi (o primeiro jurista e o segundo membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA), o senador Eduardo Suplicy, candidato à quarta reeleição, pretende dilatar o prazo máximo de internação de três anos previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) aos autores e partícipes de graves atos infracionais: no Código Penal, o prazo máximo de cumprimento da pena é de 30 anos e, no ECA, a internação não pode ultrapassar três anos. Mais ainda, pelo ECA são obrigatórias periciais semestrais e a permitir, por decisão judiciária, o imediato levantamento da custódia fechada. A propósito, o ECA, no que toca às internações por atos infracionais, adota o  princípio temporal da brevidade (art. 121).
O endurecimento é preconizado pelo candidato ao Senado Gilberto Kassab e também pelo governador paulista e candidato à reeleição, Geraldo Alckmin. Essa dupla promoveu, em operações policiais na Cracolândia, a mais grave violação a direitos fundamentais da nossa história republicana, a vitimar maiores e menores dependentes químicos. Alckmin, no momento, está às voltas com uma ação civil pública promovida pelo Ministério Público e em face de superlotações em unidades de internação: Alckmin faz tabula rasa à regra do ECA impositiva de respeito à dignidade da criança e do adolescente.
Como se percebe, os candidatos mencionados não pensam em reformas necessárias à emenda do infrator e à sua reinserção social.  Eles são adeptos apenas da doutrina positivista chamada de “Lei e Ordem”, de clara origem reacionária e de natureza vingativa. Doutrina coincidente com o modelo norte-americano, que, com sanções elevadas, imagina poder inibir a prática de atos criminosos.
A propósito, volto neste espaço a recordar um fato histórico, remonta ao tempo em que a Europa se inquietava com um médico psiquiatra, Cesare Lombroso. Com efeito, seguindo a vertente darwiniana, divulgou-se, em 1871, a teoria acerca do criminoso nato: “L’uomo delinquente in rapporto all’antropologia, giurisprudenza ed alle discipline carcerarie”. Tratava-se do homem propenso a praticar crimes em razão de taras ancestrais e anomalias somáticas. Por forças atávicas, o delinquente nascera num tempo distante daquele em que efetivamente deveria ter vivido. Portanto, e à luz dessa novidade antropológica, não mais estava a influência social na gênese do crime. Contava somente o fator biológico. Apesar da empolgação, essas ideias de Lombroso encontravam resistência na Itália. Por lá estava ainda muito viva a lembrança de um fato extraordinário ocorrido em 1855 e a envolver infratores juvenis considerados irrecuperáveis e perigosos.
O sacerdote salesiano Giovanni Bosco, naquele ano, tinha sido recebido em audiência por Urbano Rattazzi, ministro do Interior. Liberal, e apesar de anticlerical, recebeu o sacerdote desejoso de uma permissão para passear, por um dia e sem escolta policial, com os 300 jovens dados como perigosos internados no reformatório La Generala.
Permissão concedida, o sacerdote passeou com os jovens, que se comportaram de maneira exemplar, sem qualquer tentativa de fuga. Notou-se, logo, que o acontecimento colocava em dúvida os métodos empregados nesse reformatório, onde mais de cem truculentos guardas cuidavam da disciplina. E isso desafiava, também, o acerto da doutrina de Lombroso.
Consultado pelo ministro, explicou Dom Bosco: “A minha é uma força moral. O Estado só sabe ordenar, punir e não investir na recuperação. Eu vou diretamente ao coração dos jovens e a minha palavra é a palavra de Deus”. Sobre Lombroso, dom Bosco, santificado há 80 anos, nunca concordou com “a maldade instintiva, fruto de tara biológica”. Fundador da Pia Sociedade Salesiana, certa vez alertou: “O objetivo da minha Sociedade é o de despovoar as ruas de jovens delinquentes e educá-los, para a tranquilidade de todos e a honra da pátria”.
Pano rápido: sem apresentar programas adequados de emenda e reinserção a justificar um aumento do lapso trienal de internação, falta legitimação ética às propostas dos candidatos. Puro populismo em busca de votos.

O texto foi originalmente retirado da coluna sociedade da Revista Carta Capital
http://www.cartacapital.com.br/revista/813/memorias-de-alem-tumulo-7557.html


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